De vez em
quando, entre a espuma dos dias, aparecem acontecimentos que, sendo notícias
menores nos alinhamentos noticiosos, acabam por ter ecos e ressonâncias que
merecem bem um par de minutos de reflexão,
Das últimas
semanas, destaco dois desses casos:
1. A mulher que não quis laquear as trompas:
um tribunal de Sintra decidiu retirar sete dos dez filhos (menores de sete
anos) de um casal e encaminhá-los para adopção, de forma definitiva e sem
possibilidade de manutenção de qualquer laço futuro com os pais biológicos.
Os argumentos
que sustentaram a sentença foram dois: baixo nível económico e a recusa da
mulher em aceder à laqueação de trompas, desrespeitando assim o acordo de
promoção e protecção de menores.
Tenha-se em
consideração que, na avaliação do caso, não foram denunciados maus-tratos
físicos, psicológicos, nem qualquer outro tipo de abuso.
Há aqui, em
primeiro lugar, uma imensa e repugnante desumanidade.
Há, em segundo
lugar, uma abusiva concepção das capacidades dos poderes públicos. Desde quando
pode, num contexto de liberdade democrática que tanto se gosta de florear ao
nível do discurso, aceitar-se que uma mulher possa ser obrigada a fazer uma
laqueação de trompas? Como pode esta ingerência na esfera íntima, privada e
livre de uma pessoa ser usada como argumento para sustentar uma decisão
judicial?
Por ser pobre e
por não abdicar da sua liberdade em assuntos que só a ela diziam respeito, esta
mulher perdeu sete filhos. É um castigo que diz muito mais sobre o sistema que
o permite, do que sobre esta família, agora desfeita.
2. Zico, o ser “senciente”: um cão
arraçado de pitbull provocou a morte de um bebé de 18 meses.
Até há poucos
dias, dezenas de milhares de pessoas tinham assinado uma petição pública para
impedir o abate do Zico, decidido em cumprimento do previsto na lei.
À volta do
assunto invocou-se um argumentário teórico que dilui as fronteiras entre
animalidade e humanidade. Para o Partido pelos Animais e pela Natureza (PAN) há
apenas “seres sencientes”, que se dividem, isso sim, em “animais humanos e não
humanos”.
Bebendo das
teorias de Peter Singer, esta gente advoga que o “especismo”, entendido como
uma hierarquização das espécies, é um erro porque, dizem, a teoria da evolução
supõe um continuum natural e, logo,
um continuum ético.
Se há
fronteiras a definir, elas devem estar, segundo esta peculiar lógica, entre
seres “sencientes” e “não sencientes”, ou seja, entre seres capazes de sentir
dor ou prazer e os outros…
A consciência
deixa de ser, portanto, o critério distintivo.
A derivação
popular desta teorização descamba para o lado emocional: “O bichinho não teve
culpa”.
E nisto têm
razão. E rebatem, eles próprios, a sua argumentação. O Zico não teve culpa.
Porque a culpa supõe uma consciência ética e a capacidade de acção intencional
que o Zico, pobre “ser senciente”, não tem. Lá se foi o “continuum ético”…
E, já agora, a
criança chamava-se Dinis Janeiro.
Publicado na "Mensagem de Mora", edição de Janeiro 2013
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