O Quim levantou-se da cadeira
indignado. E sentou-se no sofá, onde a indignação tende a suavizar-se.
Quim não gosta que a indignação o
manipule. Não participou nas manifestações que levaram milhares à rua e olha
com estranheza para quem, em nome da indignação, vai para o espaço público
levantando cartolinas com ortografia lamentável e sintaxe embaraçosa.
Há quem veja neste pudor um sinal
de snobismo. Mas essa é uma avaliação precipitada. Quim sabe-se tímido. E, aos
tímidos, já é difícil dar a cara por uma frase bem construída; quanto mais por
um predicado com sujeito desencontrado…
Nos últimos dias, a indignação
tem-lhe subido das entranhas cada vez que abre o correio electrónico. Não por
qualquer defeito do software, mas por ausência do que espera. Nos últimos três
meses enviou duzentos e setenta e quatro currículos. Sim, 274. E como teima em
assumir-se como optimista moderado, acreditou dever esperar, pelo menos, cinco
por cento de respostas e, vá lá, um par de propostas, mesmo que desajustadas
face às habilitações.
Passados noventa dias, só quatro
respostas caíram na caixa, com duas frases alinhavadas em tom neutro e promessas
de “talvez um dia”. Ou seja, nada.
Houve tempos em que os amanhãs
cantarolavam, mesmo que sem devaneios desproporcionados. Foi no tempo em que a
engenharia do ambiente era apresentada como caminho prometedor. Havia uma “onda
verde” e uma “aposta ecológica” e um “investimento estratégico nas energias
renováveis”… O ambiente era “cool”, a reciclagem era “estrategicamente
sustentável” e ser engenheiro do ambiente parecia – parecia mesmo – uma opção
sensata.
Quim demorou pouco tempo a
perceber a realidade, depois de sair da universidade. Seis meses depois era
considerado “sortudo” pelos seus colegas de curso, por estar a trabalhar por
600 euros numa sucata com pretensões ecológicas. Um ano depois deu-se conta que
as aspirações de carreira oscilavam entre mudar de sucateira ou conseguir um
arranjinho numa das autarquias vizinhas, que sempre vão criando uns estágios e
umas “prateleiras” para jovens de canudo inútil e cartão partidário
prostituível.
Isto foi há três anos. No Inverno
passado, a sucateira faliu e Quim foi parar ao desemprego. E, de um momento
para o outro, viu-se a percorrer as poucas empresas da zona com um papel do
Instituto de Emprego onde tem de ir pondo carimbos, para provar que está a
procurar trabalho. Sentiu-se indigente. E a indignação começou a subir-lhe à
garganta, tal e qual a azia, mas sem pastilhas Rennie que lhe possam valer.
Quim tamborila com os dedos no
braço do sofá. E dá-se conta que à indignação já não sucede a raiva. A raiva
até era boa; fazia-o sentir-se vivo. Agora já não sente raiva. Está só azedo.
Um azedume fundo e negro. Peganhento. Pesado e sujo.
Quim assustou-se. Deu um salto do
sofá e foi buscar a carteira. Saiu de casa e caminhou com passo firme até a
papelaria da esquina. Chamou a senhora de óculos grossos e pediu: “Quero dez
cartolinas amarelas e dois marcadores pretos, se faz favor”.
Publicado in Mensagem de Mora
Rascunhou as cartolinas, saiu à rua a exibi-las, e o que ganhou com isso? Uma sensação de rouquidão na garganta e a total indiferença daqueles a quem se dirigiam as suas mensagens...
ResponderEliminarHá que encontrar novas formas de luta. As velhas estão gastas e já não têm a eficácia de outros tempos...
Olá Precário,
ResponderEliminarConcordo.
Mas a ideia por trás do texto não é tanto um apelo à manifestação de protesto. É mais reflectir sobre os estragos nas dimensões cognitiva e emocional dos indivíduos. O roubo da esperança azeda a pessoa...