A constatação é banal: em
qualquer acontecimento considerado importante, as pessoas gostam de
fazer fotografias ou filmes. Trata-se de “fixar” o momento,
providenciar “recordações”, partilhar o envolvimento, fazer
prova da presença e participação.
Uma imagem típica das reportagens
televisivas sobre um concerto musical, por exemplo, é o plano geral
de uma multidão com telemóveis no ar a filmar e a fotografar. O
mesmo acontece com interacções individuais com figuras públicas:
só vale se houver “selfie”. Que o diga o nosso Presidente da
República…
Nos últimos dias, a vinda do Papa
Francisco a Portugal, por ocasião do centenário de Fátima,
proporcionou uma manifestação exuberante desta necessidade,
aparentemente compulsiva, de aprisionar experiências em suporte
digital e de as difundir nas omnipresentes redes sociais. Neste caso
concreto, estar em Fátima, presenciar e fazer parte do que ali se
viveu, pode ser, para muitas pessoas - sobretudo se crentes –
percebido como uma experiência carregada de significado. Um exemplo
concreto: muitas pessoas queriam muito ver o Papa de perto.
Compreende-se. Não há muitas oportunidades de o fazer. É um
momento raro. E essa proximidade, neste caso, resume-se a vê-lo
passar, com sorte, a poucos metros, durante alguns segundos. Gastar
esses segundos a fotografar, ou a fazer directos no facebook, parece
ser uma certa forma de auto-boicote da própria experiência. O mesmo
acontece quando surge a possibilidade de conhecer pessoalmente alguém
que nos interessa, como um escritor, um pintor ou quem quer que seja.
Reduzir a interacção a uma selfie, parece ser uma formar de
desperdiçar a oportunidade de experimentar um encontro
significativo.
É no que toca à “experiência”
que este comportamento traz questões interessantes. A palavra
“experiência”, na sua origem latina significa tentativa.
Configura-se como uma investida sobre a realidade, uma apropriação
do mundo, no sentido de o assimilar, fazê-lo um pouco nosso. A
verdadeira experiência tem a ver com o que nos marca, com o que nos
insere na realidade que estamos a viver. Para usar a terminologia de
José Gil, tem a ver com o mundo a inscrever-se em nós e nós
nele. Inserção e inscrição são conceitos que ajudam a perceber o
que é experimentar.
Walter Benjamin, na sua Teoria da
Experiência, fala da “experiência depauperada”. Posteriormente,
fez uma distinção pertinente. Distingue experiência autêntica
(Erfâhrung), de vivência (Erlebnis). Ao contrário da experiência
autêntica e plena fundada nas ideias de tradição, narração e
comunidade, a vivência está centrada no indivíduo, na consciência
e na percepção isolada e superficial. Segundo Benjamin, a
experiência moderna apreende sobretudo de forma fugaz, extemporânea
e fugidia.
Relaciona o crescente empobrecimento
da experiência com o declínio da comunicabilidade dessa
experiência. Mas, no sentido que Benjamin lhe dá, comunicar a
experiência exige tê-la vivido verdadeiramente. Ou seja, para que
eu possa comunicar o que experimentei, tenho de deixar que a
realidade vivida se entranhe em mim, criando significado. Comunicar
experiências não é informar. Não basta transmitir factos, mas
partilhar o que esses factos significaram e mudaram na minha vida. O
acesso massivo e permanente a múltiplas formas de comunicar, não
faz com que comunique mais. Grande parte das vezes só faz de mim uma
câmara de eco.
Obviamente, Benjamin, que escreveu
há mais de 70 anos, não podia conhecer o maravilhoso universo das
redes sociais, dos directos de mim para o mundo, das selfies e
de toda a parafernália tecnológica que nos faz viver numa ilusão
de comunicação permanente. Mas que é só isso: uma ilusão. A
mediatização depaupera a experiência e esvazia a comunicação.
Quando eu consumi os dois minutos
com o autor que admiro a tirar uma selfie, perdi a oportunidade de
fazer do encontro uma experiência; quando, em vez de sentir e
perceber a música do concerto em que estou, ou do momento histórico
que presenciei, me limitei a filmar para pôr online, deixei a
realidade escorregar-me. E quando isso acontece, fico sem nada para
contar, verdadeiramente, porque não vivi nada. No máximo, posso
retransmitir informação. Nunca uma experiência.
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