Violência Doméstica II: Por que é que ela não o deixa?

Quem tem a sorte de não fazer parte dos dinamismos viciados das relações violentas, tende a simplificar as coisas. E perante casos de violência de género, há quem pergunte com singeleza de espírito: mas por que é que ela não o deixa?
O primeiro dado a reter é que, de facto, muitas das mulheres agredidas acabam por abandonar as relações. Os estudos de Jacobson e Gottman, por exemplo, sugerem que em mais de metade dos casos é isso que acontece.
E nos outros casos?
Em primeiro lugar, convém lembrar que é muito mais fácil entrar numa relação violenta do que sair dela. E o medo cumpre aqui um papel central. Um medo que, com o tempo, se tornou quase um estado de espírito permanente; que se transformou no principal critério na hora de tomar qualquer decisão, desde as insignificantes, como decidir que roupa vestir, até às fundamentais, como a de abandonar ou não a relação.
E este medo tem fundamento. As possibilidades de ser brutalmente agredida ou até assassinada aumentam exponencialmente durante os meses posteriores à separação. Confiram-se as estatísticas...
Em segundo lugar, muitas mulheres enredadas em relações assim, não dispõem de recursos, nem de independência financeira. Aliás, faz parte da dinâmica destes casos a dependência dos agressores, que eles se asseguram de manter, como forma de controlo. A esta percepção de vulnerabilidade económica, soma-se, frequentemente, a presença de filhos pequenos que, por um lado não se quer deixar e, por outro, se pensa impossível sustentar.
Em terceiro lugar, depois de ser submetida a abusos físicos e psicológicos durante muito tempo, de forma sistemática, a vítima é despojada da sua auto-estima, até ao ponto de chegar a acreditar que precisa do seu marido para sobreviver. O mais frequente é que uma mulher maltratada anos a fio se tenha a si mesma em baixa conta, se considere incapaz, insegura e totalmente dependente daquele que a agride.  O marido maltratador passa anos a dizer-lhe que não vale nada, que é incompetente, feia e estúpida. E, com o tempo, isso interioriza-se. É comum que estas mulheres acabem por apresentar os sintomas típicos do Sindrome de Stress Pós-Traumático: depressão, ansiedade, sensação de separação do próprio corpo, insensibilidade ao mundo físico, pesadelos... Este quadro provoca disfunções de comportamento que se repercutem  na relação com outros membros da família e na dificuldade em fazer planos e tomar decisões.
A tudo isto soma-se, em alguns casos, uma tolerância à violência, como pertencendo ao que “faz parte” da relação. Obviamente, as mulheres não gostam da violência, fazem o possível para acabar com ela ou para a diminuir, mas algumas consideram que não é razão para pôr um fim à relação. Muitas mulheres que vivem há anos em relações violentas, continuam a falar de coisas como “compaixão” pelos maridos, acalentando ainda a esperança de “regeneração”. Esta atitude, tão estranha e até chocante para quem observa as coisas de fora, pode ser resultado dos referidos processos continuados de submissão e dependência e, também, de uma cultura patriarcal e machista que ainda paira por aí, desde as tradições culturais até às anedotas sobre “as mulheres”...
Antes de perguntar, precipitada e levianamente, por que é que alguém que apanha pancada não abandona o agressor, é bom tentar compreender como é estar “do outro lado”...

2 comentários:

  1. Isso tudo o que dizes e mais umas tantas coisas. Por exemplo: a incapacidade da mulher assumir os próprios erros.
    Romper uma relação implica assumir também os próprios erros. Há quem os não saiba identificar e assumir.
    Nesta situação da violência física, muitas vezes antes da decisão de vida em comum, já tinham havido indícios. A mulher ignorou. As razões porque ignorou, determinam em muito o futuro.

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  2. Olá Maria "Jardineira" :)
    Estou de acordo contigo. Mas as razões por que se ignoram os indícios são, provavelmente as mesmas que dificultam posteriores decisões. É difícil ver e analisar com objectividade o que contraria totalmente os mais profundos desejos e aspirações. E quando se está rodeado de árvores é difícil ter a percepção das reais dimensões da floresta...

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