Impressões
O que nos incomoda não são as coisas, mas a opinião que temos delas... (Epicteto)
Bons princípios
"Fui capturado pela milícia fascista a 13 de Dezembro de 1943. Tinha 24 anos, pouco bom senso, nenhuma experiência e uma acentuada inclinação, favorecida pelo regime de segregação ao qual desde há quatro anos fora obrigado pelas leis raciais, para viver num mundo só meu, pouco real, povoado por civilizados fantasmas cartesianos, por sinceras amizades masculinas e por amizades femininas evanescentes. Cultivava um moderado e abstracto sentido de rebelião."
Assim começa "Se isto é um homem", de Primo Levi.
Não temos medo?
“Não
temos medo”, tornou-se o refrão repetido vezes sem conta, depois
de cada atentado nalguma cidade europeia. Em Barcelona voltou a
ecoar, na voz, nas faixas e cartazes, nas redes sociais de quantos
quiseram, por um lado, solidarizar-se com as vítimas e, por outro
expressar uma posição de princípio em relação aos atentados.
Afirmar
que não temos medo perante a loucura de quem mata de forma bárbara
e aleatória é importante como expressão da nossa vontade colectiva
de nos mantermos firmes enquanto comunidade estruturada sobre os
valores da civilização ocidental. Dizer que não temos medo é
afirmar que os atentados não nos farão alterar uma certa forma de
viver e estruturar a vida no espaço público. Neste sentido, supõe
a expressão de uma suposta identidade, suficientemente definida,
firme e partilhada para ser chão comum onde firmemos os pés e a
voz.
Será?
Seria
bom.
Mas
a verdade é que a “Europa” vive tempos de difusão da
identidade. Há uma deriva individualista e fragmentária que parece
tornar cada vez mais difícil afirmar quem somos enquanto comunidade,
povo, civilização. A expressão mais exuberante – e inconsequente
– desta identidade difusa é o politicamente correcto. Assenta em
múltiplas expressões de supostos valores, inquestionáveis à
superfície, mas sem mais raíz que a soma de egoísmos avulsos.
Episódios
como o dos blocos de actividades da Porto Editora, censurados pelo
governo português, em nome de uma suposta promoção da igualdade de
género, é apenas uma das expressões mais ridículas desta corrente
cheia de nada, mas muito ruidosa.
É
este “politicamente correcto” que torna difícil, por exemplo,
olhar para o terrorismo islâmico sem areia nos olhos. É por isso
que por trás dos “não temos medo” que vão irrompendo como
poesia oca, há sempre uma incapacidade de traçar limites e
fronteiras claros, atribuir responsabilidades, actuar sem
constrangimentos.
Vale
a pena continuar a afirmar que não seremos derrotados pelo medo. Mas
mais importante que isso é sermos capazes de afirmar quem somos.
Sobre as experiências empobrecidas
A constatação é banal: em
qualquer acontecimento considerado importante, as pessoas gostam de
fazer fotografias ou filmes. Trata-se de “fixar” o momento,
providenciar “recordações”, partilhar o envolvimento, fazer
prova da presença e participação.
Uma imagem típica das reportagens
televisivas sobre um concerto musical, por exemplo, é o plano geral
de uma multidão com telemóveis no ar a filmar e a fotografar. O
mesmo acontece com interacções individuais com figuras públicas:
só vale se houver “selfie”. Que o diga o nosso Presidente da
República…
Nos últimos dias, a vinda do Papa
Francisco a Portugal, por ocasião do centenário de Fátima,
proporcionou uma manifestação exuberante desta necessidade,
aparentemente compulsiva, de aprisionar experiências em suporte
digital e de as difundir nas omnipresentes redes sociais. Neste caso
concreto, estar em Fátima, presenciar e fazer parte do que ali se
viveu, pode ser, para muitas pessoas - sobretudo se crentes –
percebido como uma experiência carregada de significado. Um exemplo
concreto: muitas pessoas queriam muito ver o Papa de perto.
Compreende-se. Não há muitas oportunidades de o fazer. É um
momento raro. E essa proximidade, neste caso, resume-se a vê-lo
passar, com sorte, a poucos metros, durante alguns segundos. Gastar
esses segundos a fotografar, ou a fazer directos no facebook, parece
ser uma certa forma de auto-boicote da própria experiência. O mesmo
acontece quando surge a possibilidade de conhecer pessoalmente alguém
que nos interessa, como um escritor, um pintor ou quem quer que seja.
Reduzir a interacção a uma selfie, parece ser uma formar de
desperdiçar a oportunidade de experimentar um encontro
significativo.
É no que toca à “experiência”
que este comportamento traz questões interessantes. A palavra
“experiência”, na sua origem latina significa tentativa.
Configura-se como uma investida sobre a realidade, uma apropriação
do mundo, no sentido de o assimilar, fazê-lo um pouco nosso. A
verdadeira experiência tem a ver com o que nos marca, com o que nos
insere na realidade que estamos a viver. Para usar a terminologia de
José Gil, tem a ver com o mundo a inscrever-se em nós e nós
nele. Inserção e inscrição são conceitos que ajudam a perceber o
que é experimentar.
Walter Benjamin, na sua Teoria da
Experiência, fala da “experiência depauperada”. Posteriormente,
fez uma distinção pertinente. Distingue experiência autêntica
(Erfâhrung), de vivência (Erlebnis). Ao contrário da experiência
autêntica e plena fundada nas ideias de tradição, narração e
comunidade, a vivência está centrada no indivíduo, na consciência
e na percepção isolada e superficial. Segundo Benjamin, a
experiência moderna apreende sobretudo de forma fugaz, extemporânea
e fugidia.
Relaciona o crescente empobrecimento
da experiência com o declínio da comunicabilidade dessa
experiência. Mas, no sentido que Benjamin lhe dá, comunicar a
experiência exige tê-la vivido verdadeiramente. Ou seja, para que
eu possa comunicar o que experimentei, tenho de deixar que a
realidade vivida se entranhe em mim, criando significado. Comunicar
experiências não é informar. Não basta transmitir factos, mas
partilhar o que esses factos significaram e mudaram na minha vida. O
acesso massivo e permanente a múltiplas formas de comunicar, não
faz com que comunique mais. Grande parte das vezes só faz de mim uma
câmara de eco.
Obviamente, Benjamin, que escreveu
há mais de 70 anos, não podia conhecer o maravilhoso universo das
redes sociais, dos directos de mim para o mundo, das selfies e
de toda a parafernália tecnológica que nos faz viver numa ilusão
de comunicação permanente. Mas que é só isso: uma ilusão. A
mediatização depaupera a experiência e esvazia a comunicação.
Quando eu consumi os dois minutos
com o autor que admiro a tirar uma selfie, perdi a oportunidade de
fazer do encontro uma experiência; quando, em vez de sentir e
perceber a música do concerto em que estou, ou do momento histórico
que presenciei, me limitei a filmar para pôr online, deixei a
realidade escorregar-me. E quando isso acontece, fico sem nada para
contar, verdadeiramente, porque não vivi nada. No máximo, posso
retransmitir informação. Nunca uma experiência.
Uma celebração da Europa
Vinte e sete
líderes europeus foram recebidos pelo Papa Francisco, na véspera de
se comemorar o 60º aniversário da criação da União Europeia.
Na beleza da
Sala Régia, perante os responsáveis políticos de todos os países
da União, bem como das suas Instituições, Francisco resumiu
magistralmente a identidade europeia e traçou, de forma certeira, as
linhas mestras que poderão travar e inverter a tendência decadente
do projecto iniciado há sessenta anos. Assim as suas palavras fossem
escutadas…
Citando os
pais fundadores, o Papa recordou que o projecto europeu nasceu a
partir de “uma
particular concepção da vida, fraterna e justa, à medida do
homem”,
muito
mais do que um mero instrumento de desenvolvimento económico. Por
isso mesmo, acrescentou, “a
Europa não é um conjunto de regras a serem observadas, nem um
prontuário de protocolos e procedimentos a serem seguidos. Ela é
uma vida, um modo de conceber o homem, a partir da sua dignidade
transcendente e inalienável, e não apenas um conjunto de direitos a
serem defendidos ou de pretensões a serem reivindicadas”.
Aludindo
à actual crise que põe em risco a viabilidade e a sustentabilidade
da União Europeia, Francisco lembrou que “o
primeiro elemento da vitalidade europeia é a solidariedade”,
frisando que “este
espírito é muito necessário, hoje, diante dos impulsos
centrífugos, como também da tentação de reduzir os ideais básicos
da União às necessidades produtivas, económicas e financeiras”.
Depois
de recordar os pilares fundamentais sobre os quais nasceu o projecto
europeu Francisco apelou
à
responsabilidade
de quem tinha diante: “Quem
governa tem a tarefa de discernir os caminhos da esperança”.
E,
segundo Francisco, a Europa reencontra a esperança:
-
“Quando o homem é o centro e o coração das suas instituições”.
-
“Na solidariedade, que é também o mais eficaz antídoto aos populismos modernos”.
-
“Quando não se fecha no medo de falsas seguranças”.
-
“Quando investe no desenvolvimento e na paz”.
-
“Quando se abre ao futuro”.
A
Europa desenhada por Francisco sabe de onde vem. Assume na sua
identidade a matriz cristã e humanista, sem complexos nem snobismos.
Abraça a pluralidade, assumindo as diferenças como fonte de
enriquecimento mútuo; conhece as fronteiras da sua alma e da sua
cultura, mas não precisa de erguer muros para o afirmar. Sabe que
não há paz sem justiça e que a justiça sem solidariedade é pouco
mais que a barbárie.
Foi
um encontro protocolar? Foi. Mas naquele encontro celebrou-se a
Europa, como a concebo e desejo. Obrigado Francisco.
Sim, Je suis Charlie
Após os
atentados em Paris, houve uma enorme onda de solidariedade e apoio às vítimas
do Charlie Hebdo. A frase “Je suis
Charlie” assumiu-se como slogan e bandeira. Esse grito de protesto e de
afirmação da liberdade foi amplificado por razões fáceis de compreender: os
factos ocorreram no coração de um dos grandes países europeus e num meio de
comunicação social. Ser no primeiro mundo e atacar directamente os mídia gerou,
naturalmente, uma reacção que dificilmente ocorreria se o massacre tivesse
ocorrido num supermercado na Nigéria.
Não demorou
muito tempo até que os “mas” viessem ao de cima. E os “mas” de muita gente têm
a ver com o facto de o jornal em causa ser um periódico satírico que faz da
ridicularização das convicções alheias um modo de vida. Timidamente, primeiro,
e com voz mais grossa à medida que os dias vão passando, começou a expressar-se
uma ideia previsível: “Os tipos puseram-se a jeito; estavam a pedi-las”…
Esta ideia é perigosa.
E completamente desapropriada perante os factos.
O Charlie Hebdo
é um pasquim execrável. Mas os “Charlies Hebdos” deste mundo são o preço a
pagar pela liberdade de expressão. E convenhamos que são preço de saldo. Podem
ser injustos, atrevidos, mal criados, ofensivos… mas são apenas uma excrescência
natural de um valor fundamental que é a liberdade. E esse deve ser defendido a
todo o custo. E esse é uma das grandes conquistas civilizacionais do Ocidente.
E a liberdade vale muito mais que a falta de bom senso que possa haver em
alguns “Charlies Hebdos”. Perante a falta de tacto eu mantenho a liberdade: não
compro jornais de que não gosto, não convido gente estúpida para jantar e, se
for o caso, recorro aos tribunais para dirimir conflitos.
Não há meia
liberdade de expressão. Ou há, ou não há. Amordaçar quem usa mal a liberdade de
expressão, é minar o futuro. E, no contexto em causa, é abrir portas ao medo. Ser defensor da liberdade é, precisamente, aceitar que haja gente que pensa diferente de mim e que, eventualmente, até me pode ofender.
Por outro lado,
quem agarra numa arma para matar à bruta uma redacção inteira, está num patamar
de selvajaria completamente diferente. Não pode haver contemporizações. Não
pode haver “mas”. Só pode haver firmeza das forças de segurança e uma acção
implacável do sistema de justiça. Por sinal, uma justiça situada num estado de
direito, que tem por missão proteger e garantir a liberdade individual.
Por isso, sim:
Je suis Charlie!
Estranhos Rebeldes
Nas últimas semanas, a agenda
mediática foi dominada por casos de justiça que envolvem personalidades
conhecidas do mundo político e económico.
Desde o prisioneiro 44, até à
condenação de Duarte Lima, passando pelo caso BES e pelos Vistos Gold, não
faltou matéria de comentário e debate.
Todos estes casos são importantes
e têm relevância para a vida pública. Merecem análise e escrutínio público.
Mas, como sempre acontece, a contra-informação, o emaranhado mediático e a
fragmentação com que chegam ao grande público impedem, obviamente, qualquer
pretensa compreensão da verdade e das suas consequências.
É nestes momentos que sabe melhor
mergulhar em obras que nos possam dar uma leitura compreensiva de certos
acontecimentos históricos, o que só é possível depois de assentada a poeira. Só
o tempo permite enquadrar actores e acções, colocá-los em perspectiva e
enquadrá-los de forma ponderada e proporcional, fazendo emergir o seu real
impacto na História.
É isso que faz Christian Caryl,
no seu livro “Estranhos Rebeldes”. Lança um olhar lúcido sobre o ano de 1979,
descobrindo nele as pessoas e os acontecimentos que, na sua perspectiva,
mudaram o mundo e fizeram nascer o século XXI, como hoje o vivemos.
O autor foca-se em quatro
movimentos sociais e nos seus protagonistas: a revolução iraniana, de Khomeini
e o início da jihad afegã, a vitória eleitoral de Margaret Thatcher; a eleição de
João Paulo II e a sua peregrinação à Polónia e o lançamento das reformas
económicas na China, pela mão de Deng Xiaoping.
Acontecimentos aparentemente
independentes e com “estranhos rebeldes” (belíssimo título!) a liderá-los,
estas cinco “histórias” acabaram por dar origem ao mundo como o conhecemos.
Atravessando o mesmo ponto histórico de inflexão, estes quatro líderes desencadearam
transformações de fundo que conduziram ao tempo actual, em que “o pensamento
comunista e socialista se desvaneceu, em que os mercados dominam o pensamento
económico e em que a religião politizada (Islão) marca uma importante
presença”.
Através de uma prosa limpa, uma
análise inteligente e uma capacidade notável de relacionar dados e informações,
o autor faz uma leitura sagaz da História recente, ao mesmo tempo que nos leva
por uma demonstração da lei das consequências não intencionais. Os
acontecimentos que moldaram o contexto actual, dificilmente eram perceptíveis
naquela época. E, no entanto, “quer se goste quer não, ainda vivemos à sombra
de 1979”.
A abertura dos telejornais
traz-nos relatos prementes da espuma dos dias. Mas nunca é demais lembrar que
são quase sempre só isso.
Publicado n'A Mensagem de Mora
Um muro cai e outros se levantam
Celebra-se hoje o 25º aniversário da queda do muro
de Berlim. Não tendo sido nem o princípio, nem o fim, do complexo processo de
reorganização geo-político pós-guerra fria, aquele muro a caír aos pedaços foi
o símbolo mais visível do fim de uma era.
Durante mais de
28 anos, de 1961 até 1989, Berlim ocidental foi um enclave cercado, em
território de influência soviética. O muro dividiu a cidade, dividiu a Alemanha
e dividiu o mundo. Duas cosmovisões políticas, dois sistemas económicos, dois
blocos opostos. E um muro.
A União
Soviética desmembrou-se, a guerra deixou de se chamar fria, nasceram ou
renasceram novas fronteiras e o mundo, no seu conjunto, passou por uma
reorganização difícil de imaginar no momento em que os primeiros berlinenses
bateram palmas no cimo daquele muro.
Quem esperava
resultados simples, de vencedores e vencidos, depressa se deu conta que não ia
ser bem assim. E, ao celebrar este 25º aniversário, aí temos o senhor Putín e o
caso ucraniano a lembrar que onde cai um muro de pedra, outros se levantam.
Os muros de
betão e arame farpado não desapareceram. Aliás, proliferaram. Existem, neste
momento, cerca de 50 muros da vergonha, espalhados por todo o mundo. A maior
parte deles construídos no contexto de políticas de imigração: fronteiras entre
países ricos e países pobres são sempre bom alicerce para um muro que mantenha
os esfomeados do lado de fora.
Nos Estados
Unidos, na fonteira com o México, há 3200km de “muro”, feito de painéis de
metal com mais de 4 metros de altura, sensores infra-vermelhos, torres de
vigia, câmaras e radares. Desde 1991, já morreram mais de 5600 pessoas a tentar
atravessar.
Em Ceuta e
Melilla, cidades espanholas no norte de África, dois muros de 8 e 12 km,
respectivamente, mantêm a sul os milhares de africanos que continuam a sonhar
com uma entrada na Europa. Vedações de arame farpado, sensores de ruído e
movimento, câmaras e torres de vigia custaram 30 milhões de euros, financiados
pela União Europeia.
No Médio
Oriente, Israel continua a construír o que chama “barreira de Segurança”: um
muro de cimento armado e aço, com vedações electrificadas e valas de protecção.
Os palestinianos, que se vêem progressivamente cercados, dão-lhe outro nome: “
muro do apartheid”. Se for concluído (faltam 30%), terá 810 km. E será – já é!
– uma excelente razão para continuar o conflito…
Há outros,
muitos outros, muros de betão, arame, aço e o que mais se invente. Mas o pior
de um muro, não é o muro. É a desigualdade, a injustiça e o medo. E contra
isso, não há muro que resolva.
Publicado no Jornal de Mora
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